Uma melodia inesperada é aquela que não tem som, a que se encontra no olhar de uma criança, numa mão dada debaixo de uma mesa, no sorriso de uma mãe, na lágrima de um desejo. É a vida e o destino unidos na personificação de um sentimento.
Esfumava-se por entre os cantos da memória, aquele cheiro, aquele bafo quente, todo e cada centímetro daquela pele agreste.
Ia e voltava, como um fantasma regressa a casa ou um criminoso regressa ao local do crime. Voltava e era acolhido, ou não. Mas voltava na mesma, instalava-se supremamente no seu trono de preferência e sorria, como sorriem os gaiatos quando estão felizes e seguros.
Essa segurança que era só dele, essa segurança do meu regaço que era só dele, era o que o fazia voltar, fosse dia ou noite, estivesse eu de acordo ou não. E mesmo que fosse de desacordo o meu olhar, ele fazia-me render aos seus intentos, naquele calor que vem de dentro das almas apaixonadas, cegas e sombrias. Sombrias sim, que é penoso amar, é duro e frio e tem linhas de dor em todo o seu redor. Mas vale a pena, toda e qualquer lágrima vale o seu peso em ouro por aquele segundo em que o mundo pára e se suspende e tudo é luz e alegria sincera.
Ele voltava, envolto em nuvens de amor e desgraça, com a voz que me afugentava os pesadelos e me adormecia, que me fazia estremecer as pernas e as mãos, me suava o parte detrás do pescoço e deixava a minha própria voz com o seu timbre grave. E eu acostumava-me aos seus ares de um homem que sabia que era meu, que sabia que eu era dele, que sabia mais de mim que eu mesma sonhava ser.
Ele levava-me ao céu e ao inferno de mim, dele também. Levava-me ao topo da serra e mostrava-me o mundo e o céu ao alcançe de um palmo, dava-me tudo o que tinha em si e eu era estrelas e lua e luzes da cidade em todo ele. E depois saía da minha vida novamente, sem bilhetes nem flores, sem recados ou palavras soltas. Largava-me no desespero de ser um vulto sem ele.
Um dia quis retornar ao meu regaço, depois de deixar palavras nefastas escritas a sangue no meu peito.
Mas há sempre uma altura em que o amor por nós se subrepôe ao medo de estarmos sós.
O dilúvio fez-se senhor dos céus e do mar, engoliu as terras e salgou as praias.
Por todo o lado, jazem os chapéus de uma chuva que não cessa e não se rende às rezas das gentes aflitas. Por entre os edfícios acimentados, o vento bufa as amarguras e não se importa com o quê ou quem leva nos braços.
E aqui, no calor fresco da humidade das contruções baratas, as janelas dão-me a conhecer a negritude da noite e seus passageiros distantes, que correm em busca de um abrigo. Sem voz nem face, lá ao longe, numa rua da qual não conheço o nome.
Não alcanço o mar, fundiu-se com o céu num tom de tempestade vestidos, ligados pela àgua que foi do mar e do ar, nesse ciclo de vida ancestral e dominante.
Resta a esperança da bonança que tráz o amanhã ou o dia depois desse.