Fechei as portas do Céu e da Terra de uma assentada, queimei as asas aos anjos e fundi os cornos dos demónios. Morri dentro de mim e renasci nas mãos tuas. Dentro do teu sangue e suor, debaixo da tua pele e por entre as tuas golfadas de ar.
Sei lá se estou perdida demais para que seja salva, apenas quero este sonho tornado real, esta vertigem enebriante que me invade e me suscita a vontade de ser mais, esta sede de um amanhã igual a este hoje.
Dá-me a mão, vem comigo, a loucura é um passo necessário à beleza de se estar vivo.
Uma melodia inesperada é aquela que não tem som, a que se encontra no olhar de uma criança, numa mão dada debaixo de uma mesa, no sorriso de uma mãe, na lágrima de um desejo. É a vida e o destino unidos na personificação de um sentimento.
Sonhei com um amanhã que não existe, um sorriso que me arrancaram do peito.
Sou um ser ausente da realidade, invento um hoje só para mim, ninguém lá entra, ninguém quer. Sou uma falha de existir, aqui permaneço sem saber porquê, para quê.
Não sinto como se tivesse vindo do ventre de minha mãe, é como se me tivessem deixado abandonada num mundo que não é meu, num corpo que não reconheço, uma voz que não é igual à que vive na minha cabeça, um coração que chora mais que vive.
Sou um pedaço perdido da alma que habitei, num tempo mais longe do que a memória alcança. Um lamento vago da terra batida, um sopro de um vento que aquece o céu.
Sou menos do que sonhei ser, não percebo as demandas desta vida enredada em si.
Eras tu ou era eu, que nos afundava a história e não deixava que ela se fizesse contar? Já não sei, já não me lembro, tenho nuvens nos olhos, tenho pedras no peito.
Queria ter-te como nunca te tive, sentir-te como se não houvesse mundo à nossa espera, essa parafernália de cousas que temos para fazer, para desfazer, para agendar.
Sinto-me um compromisso sem hora, um apontamento esborratado no calendário expirado, sem floridos, sem emoções.
Se esta história não se perdura, não é por falta de Amor. Será por falta de quê, então?
Não quero mudar mais, dar mais, dei que chegue, mudei bastante, que mais podes pedir?
Tenho sangue quente nas veias, não me vou desculpar por tal.
Não, não está a resultar. Nenhum de nós tem o que precisa, o que quer. E no entanto, amamo-nos.
Perdoa que eu sinta e te inunde os ouvidos com o clamor desse sentir cego e sem botão de mute.
Perdoa que chore como se não houvera amanhã e parta pratos e todas essas outras coisas emocionais, a teu ver, desnecessárias ao nosso viver.
Perdoa que te queire mesmo com defeitos, numa esperança casta que este amor te ensine a dar por dar, a dar por receber, a dar.
Perdoa que tenha esperança e fé que não no Deus que admiras, mas em pessoas normais, a viver as suas vidas com devoção suficiente pelo coração de cada um.
Perdoa que não reze como tu, que eu rezo cantando a música que me toque ao peito e me dê alento.
Perdoa que goste de pessoas mesmo que não goste de todas e lhes responda tudo quanto a minha mente intenta, sem olhar ao decoro e à hipocrisia com que achas que o mundo merece ser tratado.
Perdoa que não ligue a estereótipos fracos e sem razão, que queira e viva como me convèm, que acredite que a beleza e a fealdade dos seres está por dentro e nunca à superfície deles.
Mas perdoa especialmente que te ame, que te tenha este amor grande e palerma, sem regras, cheio de 8's e de 80's, este amor que me deixa as veias do coração a bombear sangue que nem loucas, que me deixa louca. Perdoa que queira estar no teu regaço durante horas a fio e que te peça para me levares contigo a ver o mundo e suas cores, que a tua presença é-me vital e mortífera.
Ser tua e de não outro, é tudo por quanto posso pedir perdão.
Palavras, é o que são, meros sons que se soltam da boca e se vão poisar em teus ouvidos. Palavras empinadas umas nas outras, sem saber onde se enfiar, tamanho o tamanho e peso de cada uma. Palavras tiradas à força, sem dó, sem piedade, e que piedade haverá na descrição do volume de um peito aberto em mãos tuas?...
Palavras a rasgar o breu silêncio a que as boas maneiras vetaram a vontade de gritar, essa vontade que ferve e queima e arranca pele, qual é a intensidade do seu sentimento agreste. Palavras caladas, mudas e surdas, fingidas, singelas, palavras de Amor.
Palavras penduradas no ar, promessas de dias de um tempo melhorado, confidências do mais íntimo e intimorato dos sangues. Palavras que dizem tudo, que deixam tudo por dizer, palavras de paz e de guerra, escritas nos olhos de quem as diz e de quem as cala.
Palavras...para quê?...
Para saberes e não te esconderes nessa capa de sol apagado com que miras a vida passar. Para que aprendas que os sentimentos se revoltam mesmo que lhes digas que não podem. Para veres o efeito que têm quando ditas com emoção explícita e desembaraçada.
São apenas palavras. Saíram de mim, foram endereçadas a ti, por entre um chorar sem razão aparente. Ter-se-ão perdido? Diz-me que não.
Era tudo o que conseguia dizer, tudo o que conseguia pensar. Não, mentira. Ele tinha passado a parte do simples pensar, tinha passado para a parte do pensamento obsessivo.
Precisava dela e ela não estava, tinha partido. Tinha partido, assim como o avisara tantas vezes, vezes a que ele não dera importância.
E agora, agora precisava dela, do seu olhar perscrutador e do som da sua voz. Precisava que o viesse salvar, dele mesmo, do seu jeito monótono de viver, da rotina dos dias e da solidão das noites. E ela não vinha, ela não estava mais ali, do lado dele, a olhar por ele, a dizer-lhe o que fazer, ela tinha partido.
Quando? Quando partira ela, que ele, envolvido em si mesmo, não percebera que era a sério, que não voltaria mais? O que tinha sido o ponto maior, que ele não reparara, essa farpa que levara à separação do amor? Soubesse ele qual e não a teria atiçado.
Agora, era tarde. Era?, pensava, cego pela falta que não imaginava que ela lhe fizesse.
Talvez ainda o aceitasse, doido de dor como estava, corroído pelo vazio dela na sua vida. Sim, talvez seja possível, dizia para consigo.
Correu, voaria se pudesse, foi-se quedar na porta dela.
A pulmões cheios gritou: "Não desistas de mim!", gritou uma e outra vez, até ela vir espreitar à janela, a chorar.
Ela não chorava como choram as mulheres quando os homens as surpreendem e emocionam, não, não era esse tipo de choro.
Por entre as lágrimas, ele viu a dor tatuada nos seus olhos, viu-a tão viva que doía olhá-la directamente nos olhos. Não podia ser uma coisa nova, nada novo tem aquele aspecto, aquela dor fazia parte dela há muito tempo. E ele?, como não vira?, como não conseguira perceber que a infelicidade lhe estava a sugar a juventude? Tinha sido tão cego, tão ocupado e cego.
Perdera-a. Conseguia vê-lo, por entre o choro enlutado dela.
Caíu de joelhos no chão, num grito que a urbe abafou. Ela saiu da janela, ele morreu um pouco.
Foi um Sol novo que se levantou quando o primeiro dos longos dias acordou. Um novo Sol cheio de promessas velhas e desejos revisitados...
E, todavia, um Sol, nem mais. Um dia, um novo recomeço, uma razão a mais para mudar as águas turvas que ficaram no ontem que se finou em estilo apoteótico, em luzes de todas as cores. Repleto de sonhos e fadas, de tempo que os pede realizados, sem desculpas, sem adiamentos.
O primeiro de todos os dias, nasceu para nós, olhem-no por toda a sua beleza, por todas as oportunidades que tráz consigo, hipóteses e hipóteses de um felicidade teatral, dramática, sentida no mais íntimo de nós.
Lá atrás, por entre o rasto do álcool, das purpurinas e dos copos descartáveis, ficou um ano inteiro, a juntar a tantos que por nós passaram, uns em glória, outros nem tanto. Lá atrás, onde só a memória chega, estão as bases de hoje e amanhã, dos homens e mulheres que seremos, foi lá atrás que os começámos a definir e é agora, a partir de agora que os continuamos, muito para mudar, muito para reinventar.
Aqui e agora, no primeiro de todos os novos dias, está na altura de sermos nós e só nós, a dar uma face renovada ao amor, trabalhando-o com as mãos nuas e capazes, que tudo á volta é caso de amor ou da falta dele, tudo se dá por nome dele, tudo se acaba sem ele. É dele que nasce a esperança infindável, a fé inexplicável, a tontice pura que tantas vezes nos falta.
Talvez seja eu, mais uma alma louca e sem cura, que vê o dia a nascer e se sente grata por fazer parte dele, por ter ultrapassado mais um ano difícil e ainda assim, ter durado mais que ele.
O ano que acabou, acabou, foi-se, esfumou-se. Deixou algo de si, claro, mas foi-se, não serve mais de desculpa para que tudo seja negro ainda, para que o Sol não brilhe.
Anos, bons, maus, há-os aos magotes. Vidas, temos esta. Eu escolho vivê-la. A partir do primeiro dos dias.