Lisboa tem sabores, cores e gentes que em parte alguma do mundo se encontram.
Ruas e mar, tem cavernas de saber, tem tabernas de beber.
Lisboa vive das vozes das gentes que a percorrem e descobrem, ora o que tem de magnífico, ora o que tem de mais primitivamente macabro.
Lisboa não é mulher como as mulheres de carne e osso, tem curvas que dão em sangue, tem honestidade criminosa nas mãos. É crua, despida, cruel e ilusionista. Lisboa não se importa de o ser, não o fosse ela e seria quem a desempenhar tal papel?... Dotada de um altruísmo poético e trágico, Lisboa se encontra e se esconde por entre as gentes, por entre os passos das gentes.
As gentes de Lisboa, as naturais, as naturalizadas, as que nunca dela saíram, as que não o conseguem, as que a escolheram como lar, Lisboa é mãe e madrasta de milhares de almas condenadas. Que sujam a calçada, que a limpam, que nela sangram e choram, que dela levam a beleza e o brilho, estas gentes de todas as cores, com palavras impuras e hábitos egoístas.
Lisboa tem loucos, tem-nos nos cantos escuros dos prédios ruídos onde ninguém os incomode, incomodados por serem algo com que nunca encheram os sonhos infantis. Sim, cada marginal acobertado pela manta lisboeta, já foi uma criança. Herdeiras da rudez de um pai ausente ou da nudez de uma mãe meretriz, ou pelo contrário, vítimas da injustiça de um sistema falido, obrigadas a serem donos do seu próprio destino, da pior maneira possível.
E Lisboa, poema de um fado rouco, não os renega, esses marginais, criminosos, traficantes, atacantes, ladrões, corruptores, mendigos, vagabundos, adúlteros. Esses homens de fogo que arde os olhos, essas mulheres sem embaraço nem dignidade. Ela, Lisboa, não os enxota do seu regaço, não os julga, não os encarcera. Faz das suas calçadas a casa de todos eles, o lar de todos eles.
Lisboa tem coração demais para o seu próprio bem e basta olhá-la para o reconhecer. As balustradas carcomidas, as fachadas grafitadas, as janelas partidas, os passeios esburacados, ruínas por todo o lado.
E, no entanto, deixa um cheiro de sal no ar, um cheiro que diz que aqui é casa, aqui é lar. Deixa magia por entre o ser das gentes malditas e das gentes morais.
Lisboa tem encanto, sempre. Mesmo que lhe falte perfeição.
Havia, num dos meus livros de escola, há muitos anos atrás, um poema dedicado ao Outono do qual ainda recordo pedaços.
'tela pintada por não sei que pintor´, 'se é de morte ou de vida não sei', 'ei-lo, chegou o Outono'...
Era um dos meus poemas favoritos, se ao menos soubesse de quem!
Não gosto do São Martinho, castanhas nem vinho. Apraz-me o vento húmido a brincar com os meus cabelos, o cheiro.
O Outono trás cheiros que me invadem e inspiram, em tons de castanho amarelecido, folhas caídas calçada afora.
Quando criança, o Outono traduz-se em mudança, mais um ano estudantil, novos livros com cheiros diferentes, amigos que partem e amigos que chegam, uns de novo, outros são novos.
A vida renova-se quando as folhas morrem nos passeios e nos bancos de jardim, as árvores aguentam impavidamente as investidas do Inverno e daí a um tempo certo, outras folhas, a vida corre como planeado. A natureza segue o seu próprio relógio.
Do Outono, guardo o vento, o som dos meus passos, o cheiro e aquele poema que me levava da minha carteira de escola e me dava asas para voar céu adentro, e me inspirava a sonhar.